segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

A cidade


Nada. Apenas um disco de concreto jogado aleatoriamente no cobertor de grama. Uma gota, um resíduo, um grão. A plataforma cinza faz pousar em sua superfície um gancho que perfura a todos: quem será capaz de romper o concreto ancestral e fincar, no solo, raízes? Apenas as torres sem nome escorrem para as profundezas seus esqueletos de metal e, como colméias, abrigam a força tarefa de um povo que trabalha para manter a cidade funcionando. E eles já não a vêem os observar. Escombros onde era luz, escombros onde era história, dejetos onde era vida. Resta a poeira da lembrança. E no contraste da lembrança com a chaga aberta do olhar, percebe-se que a cidade lança suas cores - assim vemos a população que ela pinta de dor, que ela pinta de uma luz nojenta insuportável, que ela pinta de um azul humilde de dar dó, que ela pinta com um orgulho de revirar as vísceras, que ela pinta com uma velhice de interior. A mãe cidade guarda sua prole com seu carinho estrangulador, mas hoje cresce para um povo sem face, que desconhece a simplicidade das mães que dão seu amor em troca de nada. Da cidade não se quer notícias, e ainda assim elas se esparramam pelos nossos pés, se jogam nas nossas caras, grudam na nossa pele. Seu silêncio humilde indaga: quem será capaz de rasurar definitivamente o embrião que atende por origem? Os pés se movem para fora - círculo não é limite - e discos têm que ser trocados. Mas, e o céu, como resiste às mudanças? E as mudanças que os olhos acostumados não vêem? E aquelas coisas que se vão para sempre? E o rio, que ameaça morrer? E os cordões umbilicais, dos quais se faz churrasco? E o útero, recoberto de cimento e zinco? E a prostituta, que é violentada eternamente? E os portões escorando namoros inocentes? E as cruzes, que tem suas traves entortadas? E as pessoas que se tornam pássaros ao se jogarem dos prédios? E os caminhos que se apagam nos calcanhares dos auto-exilados? E se o passe de ida também é o de volta para os que têm que partir? E se estamos, Nassar, sempre indo de volta pra casa, me diz: o que é que só a casa tem, que nela vamos buscar? Cada esquina, cada tijolo, cada copa verde, cada jardim vazio, cada praça morta, cada chuva, cada pôr-do-sol, cada melodia, o porta-ovos, o s.o.s., o genuflexório, a algibeira e os alfaiates, cachorros e as linhas que desenham as ruas - visto da janela do avião, aquele retrato em que não nos reconhecemos. Os riscos na íris, os nervos nas mãos, o calor do asfalto, a fineza da flor. Tudo.