terça-feira, 1 de julho de 2008

Fora da linha


Há em frente à casa, uma linha que passa, ou passam por ela. Uma linha que costura o imenso território nacional tinha mesmo que ser de aço, pousada sobre infinitos dormentes – teclas glissando à medida que o trem desliza. Nunca houve como não saber da sua existência, como ignorar a presença daqueles fios indestrutíveis, silenciosos, serpeando terra adentro. Antes mesmo de enxergar, eu já sabia, pois gritava sobre eles a máquina que passava arrastando todos os sons, se lançando com fúria na velocidade, na fome de devorar distâncias, de se jogar no mar, e fazendo soar, sozinha, o som da marcha de exércitos em guerra, seus tons, semiltons, megatons e toneladas. Pequeno, eu não conseguia conceber nada maior e nada menos livre do que o gigante barulhento. Eu corria depois para os trilhos, entre eles, a examiná-los com a inocência muda das crianças que num instante reconhecem a mágica. Como podiam aquelas linhas prender o monstro enorme? Eu observava, pelo quadrado recortado no portão. E quando eu mal sabia o significava me sustentar e caminhar com meus próprios pés, surgiu uma mão, logo seguida de outras, apontando meus pés e minhas pernas, destacando a abominação – meus pés pequenos (olhei pra baixo) e minhas pernas eram tortas e não me conduziriam a lugar algum, eu nunca seguiria um rumo, nunca encontraria caminho. Por nova resolução dos homens de branco, eu tinha que andar em passadas com os pés formando um ângulo aberto, oblíquo, mais aberto que pudesse – pés de palhaço, brincavam seriamente. Com o novo andar, tornei a subir naqueles trilhos, que eram guardados já por algumas gerações da minha família. Eu, desconfio, desde antes não me encaixava. Pois terá sido desse momento que me vieram as vontades de derrubar os vagões, fazê-los descarrilar, ver os trens colidirem e as linhas se entortarem? Na impotência de não conseguir detê-los com as mãos, tal qual era minha vontade, passei a deixar pedras sobre os trilhos, na esperança de que o trem pudesse saltar ao passar sobre elas e, enfim, tombar no chão. Eu observava a armadilha infantil falhando perpetuamente. Suspeitei que a linha não só conduzia o trem, mas também o protegia, a ponto de se lançar sobre o rio com força suficiente para erguer todo o interminável comboio, sustentando sua passagem. Forças que não fossem de mil homens, não a afetaria. Conheci também os destinos de quem se esquecia em seu caminho, cruzando suas pernas com o fio de corte dos trilhos – muitas delas ficavam por lá, frente à minha casa, para serem recolhidas quando a ajuda chegasse. Em visitas, as via mais de perto, adultos e crianças, mutilados nas linhas do trem. Meu olhar sobre elas, as linhas, ficou mais grave, mas não sem ternura, que criança não faz inimigos de verdade. Mais uma vez distante, eu simplesmente observava (minha sina maior, como se vê) o rio férreo dos trilhos correm sempre à frente de todas as coisas, de nós e do tempo, e do próprio vagão – descoberta essa que seria atualizada a cada primavera, no passeio anual que fazíamos até estações abandonadas. Descobri que há meios de mudar os trens de linha, que parar um gigante em movimento é mais difícil do que eu pensava e que, por vezes, eles descarrilavam ou se colidiam como eu gostaria de ver. Já os trilhos, dificilmente se moviam. De já, concluí odiar imutabilidades. Quanto a mim, como me encaixar com aqueles pés tortos nas linhas que seguiam tão uniformes, tão disciplinadamente, tão imprevisivelmente previsíveis, dormente após dormente? Aquilo não era pra mim, eu soube, mas também sei, ainda que de pés tortos e linhas rígidas, o que é estar sobre a linha – caminho seguro – e o que é estar fora dela.