sábado, 14 de junho de 2008

O milagre da vida


O milagre da vida se dá – e quem garante? Repousa em cada placa de vidro, em cada obra de cerâmica, no fino caule de cada flor, a possibilidade da fratura, a alternativa da ruína, a destruição da sua frágil materialidade. A existência pressupõe a extinção. Os números, no entanto, quem os sabe? Se estão escritos invisíveis dentro de nós, se estão gravados no pergaminho do destino ou se são impronunciáveis, tanto faz: apenas o momento sabe quando deve agir. Nosso fim está colado na nossa pele e nós o alimentamos à base de rotina e de vícios, e ele amadurece com o circular dos dias. Chegam à Terra como exércitos descendo dos céus ou frutos despencando das árvores - muitos sadios, outros podres – os filhos do homem. Uns nascem prontos para serem devorados pela boca caudalosa e sedenta do mundo, dentes grandes e lubrificados, incisivos de navalha e molares gigantes, outros já nascem corrompidos, quase colheita perdida: mesmo a foice os nega. Nascem podres, com a cor da chaga tingindo a pele, sentem a dor da realidade, o ar grava manchas na epiderme, e logo têm o cordão cortado e são levados à urna transparente – sua companhia nos primeiros dias. Levam para sempre nos olhos a fumaça desses dias iniciais e aprendem (como poderia ser?) a enxergar, com seus olhos de fumaça, através da névoa azul e preta que lhes cobre o caminho. Vêem, descortinando a neblina um mundo feito de agulhas, comprimidos, estetoscópios, ataduras, taquicardia, macas, nebulizadores, pupilas dilatadas, corpo trêmulo, reações adversas, boca seca, duas estacas atravessando do peito às costas. Da boca, exala a fumaça feito borboleta, e a fumaça toma todo o seu mundo. Tonteira, sonolência. Mas um pouco de serenidade, calmaria comprada com drogas. Povoam suas cabeças, lentamente, vozes que falam por eles, hasteando perguntas: por que é que eu tenho isso? o que foi que eu fiz? vai passar? eu vou morrer? deus gosta de mim? se a vida fosse boa, a gente não nascia chorando. Toma um desses nas mãos e examina: dopado, corroído, com o corpo carregado de ites, oses e ias, como um anjo em coma ele dorme seu santo sono – vence mais um dia. Está talhado nos passos da dança da fumaça o seu destino, talhado o seu número, convocado sem atraso. A fumegante criatura sobrevive e se pergunta se acaso não é a vida a real enfermidade. Em meio a névoa, ele ouve dizerem: nasceu - e compreende: contraiu vida.