sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

A gota azul


Tudo que é chuva cai. Nem sempre quando se espera, nem sempre onde se quer. É do feitio das nuvens atrasarem o parto e do costume do vento carregá-la para outro lugar. Imprevisível chuva. De reter tudo que evapora e sobe ao céu, feito oferenda aos deuses, numa gestação sigilosa, e irromper de volta em torrente ou chuvisco, ignorando o sol, a seca, o campo, os dejetos urbanos, as roupas no varal e os cabelos alisados a ferro. Há de cair em suicídio, infinitos anjos se jogando do Paraíso, pra atingir o chão com a sinceridade de um estalo, com a humildade de não ter asas. E reproduz o som de seus gritos de morte – a queda, pois cai em silêncio – a simples chuva. Assim escorrem, corrompendo com o próprio corpo tudo que lhes opõe passagem, penetrando papéis, apodrecendo madeiras, deslizando encostas, enchendo e transbordando rios, para que se elevem e invadam as casas. Cai a infinita chuva, que torna tudo irregular. Cai, mas deixa colorido o horizonte, porque cai com suas tintas roxas, pigmentos laranja, amarelos e cinzas, seu ar solene e seu carnaval cromático. Deixa o sol se pôr em seu final, num silêncio grave, enquanto a cidade se derrete, escorrendo com suas cores, silenciosas e quentes, num mesmo lugar, um mesmo recipiente. Do mesmo modo, escorre a paisagem, todo o panorama que se vê, e a própria cor dos olhos, as montanhas, os campos, construções, estátuas e pessoas – chocolate colorido derretendo. Escorrem e completam a paleta, dilúvio de cores, na mão do pintor que observa, em seu ateliê vazio e sem luz, contempla a tela em branco. Ele sente o puro ressoar do Nada, até a exaustão. Vira-se, então, para as tintas e as arremessa com fúria na tela, modelando-as com as mãos, quase argila, sem obter resultado, a não ser sufoco. Senta, se já não sabe o que é respirar, e abaixa a cabeça, ouvindo a chuva. Os pulmões, também, são capazes de se virarem do avesso, e o ar vem de dentro de nós para o resto do mundo. Pensou ser isso a inspiração e se lembrou do rio, que sobe suas margens e atravessa planos para levar os filhos da gente para o oceano da saudade eterna e, com raridade, quase nunca, sobe até nossa porta para deixar uma criança vinda do seu próprio leito. Tomando o pincel, o pintor traduz a cena para a tela, em sua esgrima solitária, e se realiza. O quadro é, agora, o centro do ateliê vazio. Mas é num canto, no chão, entre todos os restos, bisnagas gastas, papéis sujos, idéias despedaçadas e a lama da preguiça, que surge o inesperado. Uma, entre as infinitas gotas de chuva, uma entre todas as cores da infinita paleta – a gota azul respira.