quarta-feira, 30 de abril de 2008

Da beira do rio


No ano em que eu nasci, ele se estendeu e foi até a porta da minha casa molhar a escada. Essa classe de seres, nós os temos por muito silenciosos, por mais escandalosos que sejam - e são - e não ouvimos senão o seu tímido chiar, enquanto na verdade eles rebentam com violência. Sei que desde sempre eu tenho ouvido, dentro da minha cabeça, o ressoar de histórias que ninguém me contou, e que se arrastam na parede interna do crânio, com seus nomes esquecidos e datas rasuradas. Contam de um dos pilares que sustentavam o céu, um pilar cujas extremidades nunca podíamos ver ao mesmo tempo, e era desconhecida a quantidade de homens necessária para dar uma volta ao seu redor. Um pilar solitário, solando seu trabalho de Atlas frente a um relógio sem ponteiros, ignorando as dimensões do tempo. Parecia, de fato, o braço de um deus sustentando a abóboda. Certa vez, porém, como num suspiro, esse braço relaxou e escorreu, pousando no campo seu corpo de serpente, mole e leve. Despertou de um sono tranqüilo, percebeu sua condição e passou a perseguir obstinadamente seu horizonte, seu poente, seu fim – que nunca alcançava, mesmo esticando os dedos. Foi assim que escorreu pousado no leito, em seu sono milenar, cortando o relevo acidentado das terras ancestrais, bombeando vida terra adentro e fazendo nascer suas extensões, o que conhecemos por plantas e animais, mesmo parecendo ao resto do mundo que estava, na verdade, morto. O tempo correu, ente veloz, fazendo com que tudo que brota se esticasse ao céu, espalhando pó, imprimindo à vida um caráter de círculo e talhando nos rostos riscos de sua passagem. Em suposto silêncio, o rio sentia na fina superfície de sua pele, a passagem do seu célere irmão, a tocar com os pés ligeiros sua camada mais fina. E em suas margens, se depositavam os produtos que o tempo fecundava, em pilhas. Os pés, que iam à ele buscar força para perpetuar a vida, iam até ele para se banharem na sua eternidade, agora iam apenas para regurgitar no seu rosto os podres, as sobras da sua espiral decadente. Até que pararam de ir visitar ancestral, pois aprenderam a facilidade de simplesmente enfiar tubos diversos em suas veias, em sua espinha, em seu sistema nervoso, para melhor drená-lo no conforto de suas aglomerações e despejar furiosamente de volta no seu corpo caudaloso as entranhas, os constituintes da civilização. O rio ficou à margem, esquecido, como um mendigo. Criam-se em seu corpo a flora e a fauna modernas – os peixes dejetos, os bichos sucatas, as flores cadáveres. Passa-se sem notá-lo, no frenesi cotidiano, ignorando-o. E podem ouvir o rio somente os que nascem com seu som na cabeça, escalando os tímpanos. Ao seu lado, se pôs certa vez uma casa, a casa, a casa de portas, janelas e teto grandes, por onde o vento soprava à vontade, sem precisar pedir passagem. A casa feita de frente pro rio, sua primeira visão ao despertar, e a última ao adormecer. A única casa próxima ao esquecido ancestral. E foi até ela que ele resolveu subir, quando chegou a notícia da vinda de um bebê. Nada disso se esconde, pode ser lido tranquilamente no emaranhado do chiar tímido do rio, que emprestou suas margens à minha infância. E reconheci sua voz em minha cabeça quando pisei descalço ao seu redor, e eu o encarava de cima da ponte, de onde quase me deixaram cair quando bebê, de todos os lados, de onde eu gostava de deixar meus olhos boiarem nas águas, até a vertigem. O rio, ele não tem raiva, nem rancor, nem solidão. Promete somente continuar bombeando a si mesmo na carne da terra, até que sua força termine, e, humilde, não espera ser salvo.