domingo, 10 de agosto de 2008

A casa


Ao portão, escadas que são hoje escombros serviam aos pés que visavam entrada. Descansando das incontáveis solas que passavam sobre seu dorso, aquelas pedras serviam de assento aos que quisessem assistir ao desfile da vida que se apresentava com exclusividade na parte pacata do centro da cidade. E quando não havia ninguém, as folhas da trepadeira que envolvia os muros se faziam de expectadores. Era dentro, entretanto, que o teatro acontecia, e ninguém morava na casa. Lá, as pessoas viviam. Erguiam-se, além do pequeno átrio vermelho envolto em jardins, os arcos que escondiam os segredos da infância, e, quando podiam, se uniam para sustentar o peso do teto que nos servia de céu. A casa permanecia envolta no seu próprio paraíso, entre as mangueiras e a goiabeira, isolada naquele centro. Talvez assim resistisse, tendo seus velhos tijolos recobertos por vidas que deslizavam entre seus pequenos corredores, e vozes que ecoaram por décadas ocuparam o espaço, impedindo que ele implodisse, e os tacos rangeram com a lembrança dos pés que cresceram descalços sobre sua pele de verniz. A casa sempre precisou mais de nós do que nós dela. E se alguém, ainda que de memória ruim, se lembra das divisões imprecisas dos quartos, dos fins repentinos das paredes, do teto que não se podia alcançar e das janelas pelas quais a infância saltava, quem suspeitaria que a casa, com toda sua idade, guardava no âmago da argamassa que unia seus tijolos as gargalhadas do alvorecer daquela vida, o cheiro dos temperos a quatro mãos, o gosto de sono da rotina macia que a vida tem quando se inicia uma história e o gosto de tantas refeições que não terminamos juntos? Mas ela observava e zelava por nós. Por todo esse tempo, fomos recolhidos no seu interior de anciã, e nele nos criamos enquanto nos preparávamos para sair. Um dia, a janela da casa que nos recebia, olhou para dentro e se viu vazia. Nos seus quartos, esfriava o tempo, e as paredes retinham as marcas dos dedos, mas não se recordavam do toque. A casa foi abandonada e ficou cinza, abrigando a tristeza da partida da vida que a sustentava. Ficou de pé somente por memória, mas viu a balança pender para o lado oposto. A casa, então, ruiu sem sentido, se partiu em pedaços, e deles emanou o vapor de tudo que havia de secreto em suas entranhas, ascendendo ao céu como oferenda e desaparecendo em uma imensidão que a casa não podia conceber. Mas a história ainda está escrita na terra que retém a água que se infiltrou naquelas paredes, no farelo dos tijolos velhos que restaram, nos olhos que ferimos de secar nas lembranças dos portões, dos arcos, das portas, das árvores, da epiderme de tinta a óleo, das janelas que nos recebiam.